"Não gosto de passar a ferro mas sou boa a cozinhar iscas"
Durante anos vimos Amália como a nossa grande embaixatriz no estrangeiro. Os Madredeus tiveram depois esse papel, que agora é seu. É uma responsabilidade ser a voz da música portuguesa mais exposta no mundo?
Talvez seja. Mas não fiz para que isso acontecesse, muito sinceramente.
Mas tem trabalhado para que isso aconteça.
Trabalhei muito, mas não foi com essa intenção. Gosto de trabalhar, gosto daquilo que faço e eu própria me imponho metas...
É workaholic? Ou seja, é uma "trabalhólica"?
Sou um bocado. E imponho muitas regras a mim própria. Sou extremamente exigente comigo e com as pessoas que trabalham comigo. Às vezes sou um bocado até arisca com as pessoas que trabalham comigo. Não existe perfeição na música…
Mas há exigência...
Custa tanto fazer mal como fazer bem. A energia que se gasta é exactamente igual. Portanto, já que vamos fazer, vamos fazer bem. Neste momento, cada vez mais, estou interessada em música, boa música. É certo que tenho as raízes da minha cultura, aquelas bases que eu conheço como sendo do fado, a minha forma de cantar terá sempre fado, será muito difícil não ter…
Mas está a descobrir o mundo?
Mas ao mesmo tempo eu estou a descobrir coisas que fazem parte do meu mundo de sete anos de viagens, de sete anos de conhecer gente nova, grupos novos, culturas novas. Agora, eu imponho-me regras porque, tem a ver com a minha forma de estar. Mas eu nunca procurei dizer assim: "Eu quero ser a cantora residente de Carnegie Hall." Nunca me passou pela cabeça uma coisa dessas, nem nunca fui à procura disso. Aconteceu. Como, por exemplo, ser convidada todos os anos pelo Walt Disney Concert Hall, nunca me passou pela cabeça. Ser uma das consultoras da Ópera de Sydney, também não me passou pela cabeça. Portanto, são coisas que eu não fui à procura, mas que aconteceram.
Foi o trabalho que conquistou isso tudo?
Se me perguntarem: trabalhaste muito? Trabalhei. E continuo a trabalhar cada vez mais.
E tem uma certa disciplina pessoal?
Sou muito disciplinada, nesse sentido sou. Quando entro na estrada…
É para trabalhar...
É disciplina, é disciplina.
Tem uma disciplina de alimentação?
Alimentação, sim. Mas eu já tenho normalmente.
Disciplina com a voz, também?
Com a voz não tenho.
Não?
Incrivelmente.
Fala até perto da hora dos concertos?
Isso não faço. Quando faço uma viagem, estou a maior parte do tempo calada. Mas quando me dizem que não posso beber coisas geladas pergunto porque não? A voz não é um cristal, tem de se aprender. Houve uma altura que tinha mais cuidados e, por exemplo, se apanhava um bocadinho de sol, ficava rouca. Depois apanhava um bocadinho de humidade, ficava rouca. Hoje, não! Ela tem de se aguentar, pronto!
Poupa a voz falando menos, então...
Falo pouco. Obviamente que, depois quando chego ao teatro, é sempre uma festa. Os músicos que eu tenho agora são como uma família, e não param de fazer brincadeiras. Por exemplo, agora em Madrid, encheram-me o vidro de trás do carro com papéis a dizer "amo-te". Fazem-me malandrices até mais não.
Mas exige para si um período de concentração antes de entrar em palco?
Eles sabem que preciso, antes de entrar em palco, de pelo menos 15 minutos para mim. Falo comigo própria…
No que pensa antes de entrar em palco?
Todos os dias de manhã agradeço, há uns que chamam Deus, outros que chamam Alá, outros que chamam energia, o que quiserem. Mas ali, naqueles 15 minutos, agradeço, peço ajuda… Peço para ter força e a energia para conseguir fazer aquele espectáculo.
E que mais faz antes de entrar em cena?
Depois saio e bebo um bocadinho de whisky com todos os meus músicos, ou um bocadinho de vinho. Depois começamos ali todos na "galhofa"... A adrenalina começa a subir. E ao mesmo tempo há aquela angústia, que é o medo, é o nervosismo, como é que vai ser quando entrar em palco...
É sempre o desconhecido?
É sempre o desconhecido, sempre. Não há palcos conhecidos, por mais que eu retorne ao mesmo sítio, é sempre desconhecido.
É supersticiosa ou ritualista, se alguma coisa destas falha?
Não! Não tenho nada dessas coisas. Eu entro, não aqueço voz, nem faço nada. Entro, vamos embora, vamos cantar. E até para aí ao terceiro, quarto tema, ainda estou a sentir…
Para o que é que olha quando está no palco?
Não se consegue ver muito! Mas há vários tipos de público. Se eu estiver numa sala clássica, é um público distinto. Se estiver num festival é rock'n'roll, mesmo que seja fado.
O concerto é fisicamente exigente?
É mais um cansaço psicológico do que físico. Porquê? Há que ter uma concentração e perceber no imediato a que tipo de público me estou a dirigir...
E apostar tudo?
Eu dou tudo, tudo.
Há imprevistos, sempre. E como é que os vai comunicando com os músicos?
Digo-lhes, olho para trás e digo "saltamos o Alfama". E eles dizem uns aos outros "Não há Alfama", pronto, já está.
E quando acaba o espectáculo?
Quando saímos, saímos todos aos abraços uns aos outros.
E se corre mal alguma coisa, falam logo?
Falamos, logo. Resolvo logo o assunto na hora. Chego lá e digo "aquela música, aquela nota que tu deste ali, não é ali, é um bocadinho mais à frente"... E fica o caso resolvido, já nem precisamos de falar mais nisso....
Depois há aquele ritual em que as pessoas vão aos beijinhos, aos bastidores. Às vezes não apetece?
A fase do beijinho… (risos) Nunca será "frete" para mim porque adoro receber pessoas, gosto de olhar nos olhos e perceber o que é que sentiram… Mas há alturas que estou muito cansada e é um esforço sobre-humano fazê-lo.
Mas recebe sempre as pessoas no fim dos concertos?
Recebo, obviamente, mas peço sempre "olhe, por favor, hoje limitem um bocadinho as pessoas, que eu hoje não consigo tanto tempo".
Que visitas mais gostou de receber no camarim, depois de um concerto?
A Barbara Hendricks. Mas já nos tínhamos conhecido antes e foi até uma história muito engraçada. Um dia, estava no pequeno-almoço, em Barcelona, e chega uma senhora toda vestida de cor-de-rosa. "Hi, do you speak english?"
"Sim", e pensei que fosse uma pessoa que precisasse de ajuda. "Ah sim? Tu és a Mariza não és?" Disse que sim. "Ai, gosto tanto da tua música, eu tento cantar em cima da tua música, não consigo. Não sei como é que fazes aquelas coisas…" E eu olhava para a senhora e pensava se não a conheceria já, até porque a cara não me era nada estranha... Pergunto-lhe. E ela apresenta-se: Barbara Hendricks. Ia-me caindo tudo ao chão. Porque eu tenho os discos dela, sou fã da senhora. No ano passado, num concerto que fiz na Suécia, oiço bater à porta, abro... Era ela.
E além de Barbara Hendricks?
Há o Ry Cooder, que até era um dos nomes que estava em cima da mesa para produzir o próximo disco. O Bobby McFerrin, também foi uma agradável surpresa saber que estava entre a plateia a assistir…
E Michael Nyman, que em tempos dizia que queria colaborar consigo?
Está zangado. Mas vai-lhe passar, que eu um dia faço-lhe a vontade, e lá canto o poema de Fernando Pessoa que ele quer.
Se tivesse de escolher uma profissão que não tivesse sido a que tomou, o que se imaginava a fazer hoje?
Sempre disse que queria cantar. Sempre. Mas se hoje me dissessem assim "não podes cantar mais, acabou", por qualquer motivo, talvez abrisse uma tasquinha.
E teria lá gente a cantar?
Não sei, se calhar até teria. Mas eu estaria na cozinha, com certeza.
Gosta de cozinhar?
Gosto.
Cozinha em casa?
Sim.
Qual é a sua especialidade?
Há umas iscas muito famosas.
Iscas à Mariza?
Faço para todos os meus amigos, desde o Pomar, ao Chico da Taberna do Chico, ao meu amigo João Albuquerque, também tem um restaurante, mas que eu às vezes vou lá para o restaurante dele fazer as minhas iscas! Mas faço coisas variadíssimas, desde uma belíssima cataplana de tamboril com molho de lima, um bom caril, uns panadinhos com risotto de espinafres ou de cogumelos...
E o que gosta menos de fazer em casa?
Da lida da coisa há uma coisa que eu odeio que é engomar. É a pior coisa que me podem pedir para fazer. Até já pus no raider [lista, sobretudo técnica, que define o que cada artista precisa para o seu concerto] que tem de haver alguém para engomar. Eu já tenho uma técnica, que são os tecidos todos amachucados para não ter de engomar. Então tenho uma pessoa comigo, em casa, que me ajuda e trata dessa parte porque eu não tenho tempo para lidar com roupa, e com essas coisas todas.
Quando não está a trabalhar, como é que gosta de ocupar o teu tempo?
Leio. Leio muito, mas nestes últimos tempos estou muito preguiçosa. Não tenho encontrado nada que ache interessante. Saiu agora o novo livro do Mia Couto, que se calhar irei comprar para ler, estou curiosa. Mas eu gosto de uma leitura que, quando acabe de ler o livro, sinta que aprendi qualquer coisa.
Lê jornais também, e revistas?
Leio. Mas nos últimos tempos, com esta coisa de estar a fazer uma tournée ibérica e a promoção do disco ao mesmo tempo, tenho lido os jornais online...
Além da cultura, que áreas a interessam mais quando procura informação?
A política.
Portuguesa ou internacional?
Internacional. Procuro acompanhar o que se está a passar. E depois, tiro as minhas ilações.
Mas nunca tornou públicas as suas opções...
Não as torno públicas, não. Tenho de ser sincera: não tenho partido. Agora, na altura certa, há pessoas que me chamam mais a atenção e que eu digo: esta é a pessoa certa, ou que eu gostaria de ver a chefiar isto ou aquilo.
Opta mais pelas pessoas que pela ideologia?
Sim. Principalmente, isso.
É uma questão de confiança?
Sim. Depende daquilo que a pessoa te transmite quando fala, quando tenta explicar qual é o objectivo dela quando vai, se for nomeada para isto, ou para aquilo. Mas não existe uma ideologia política na minha cabeça. Não existe um partido político. Também nunca me aproveitei disso...
E os partidos já se aproveitaram de si?
Também não. Não quereria que isso acontecesse, mas eu também nunca me aproveitei dessas coisas. Obviamente que tenho o maior prazer, e é para mim um privilégio, quando sou convidada pelo Presidente da República para um visita oficial e onde eu canto… Ou pelo senhor primeiro-ministro, e vou em representação e canto. Isso é para mim um privilégio. Mas não estou ligada a nenhum partido político, como também não estou ligada ao futebol. As pessoas podem pensar "ah, ela está aqui a pôr panos quentes". Mas não, porque eu não ligo a isso. Aliás, se estiver a ler o jornal é uma coisa que eu passo.
Que político mais admira?
O Mandela.
É um exemplo?
Para mim é, completamente. Adoraria poder conhecê-lo, ainda por cima ele está numa fase final, já, da vida, tem muita idade. Adoro a pessoa. E depois, quando eu estive no Live 8, ele fez um discurso... Eu chorava ao ouvir o discurso dele. Foi tão tocante. Eu sou portuguesa de alma e coração, mas eu não posso nunca esquecer que tenho outro lado das minhas raízes.
África também está aí?
Está cá! De uma forma muito suave, mas eu também sinto de certa forma as dores do meu continente africano. O povo africano está cada vez a ser mais maltratado, existe uma solução, o Bob Geldof falava sobre isso. E o Mandela tem sido uma das pessoas que fala muito sobre isso... Existe uma solução que é abrir as portas comerciais de África. África tem muita mão-de-obra. África tem muita coisa para dar e está ali fechada, cerrada em si própria, à espera do seu momento. Quantos mais anos vai levar para que se abram as portas?
E a questão do perdão da dívida, que era um dos objectivos do próprio Live 8?
A dívida? África tem dinheiro para pagar a sua própria dívida, não tem de ser perdoada. Eu li isso. Um economista inglês escreveu isto e tinha toda a razão. África é riquíssima, tem dinheiro para poder pagar a sua própria dívida. Agora, deixem-na respirar. Deixem-na crescer, deixam-na ser adulta. Obviamente, tem, como todos as casas, os seus pequenos problemas. Deixem-nos ser resolvidos entre eles. Não somos nós que temos de lá ir.
Ainda haverá ecos de uma certa postura colonialista na relação do mundo ocidental com África?
Eu não consigo bem perceber se é essa a relação, porque acho que eles próprios também não aceitam isso.
O que diz de uma figura como Barack Obama, que partilha consigo o facto de ter ascendência africana, estar na corrida à Casa Branca?
Tudo menos Bush! Mas o Barack Obama entusiasma-me muito. Para já, pela idade que tem, porque se ele for eleito será o presidente mais jovem dos Estados Unidos. Depois, gosto muito da forma como ele pensa e como expõe. E um presidente negro nos Estados Unidos seria muito bom.